terça-feira, 27 de outubro de 2009

Novo fóssil põe "elo perdido" sob suspeita


Comparação indica que Ida, esqueleto de 47 milhões de anos que virou fenômeno de mídia, não é ancestral do homem. Para grupo de americanos, semelhanças com macacos resultam de evolução em paralelo; autor da pesquisa original contesta conclusões



Um grupo independente de cientistas analisou o fóssil de primata propagandeado em maio deste ano como "o elo perdido" da evolução humana e chegou a uma conclusão não muito empolgante: o bicho é provavelmente só um primo antigo e esquisito dos lêmures.



Se eles estiverem corretos, o alarde midiático organizado em torno de "Ida, o elo perdido", ou Darwinius masillae, como o animal foi batizado oficialmente, pode se tornar um dos casos clássicos em que a vontade de chamar a atenção do público atropelou a ciência.



Afinal, a descrição científica de Ida foi coreografada com o lançamento de documentários, sites, livros e de um evento para a imprensa no qual os pesquisadores responsáveis por estudá-la compararam o fóssil com a Mona Lisa e com o Santo Graal, afirmando que ele mudava tudo o que se sabia sobre a evolução humana.



Devagar com o andor



À época, boa parte da comunidade científica concordou que se tratava de um exemplar belíssimo. Diferentemente dos outros primatas antigos, Ida, com quase 50 milhões de anos de idade, teve seu esqueleto completo preservado -sem falar na presença de pêlos e até do conteúdo digestivo do animal. Mas poucos concordaram com a sugestão de que o fóssil representava um ancestral direto dos antropoides, a linhagem de macacos que acabou desembocando no homem.



No novo estudo, que está na revista científica "Nature" desta semana, a equipe coordenada por Erik Seiffert, da Universidade de Stony Brook (EUA), compara Ida a uma nova espécie de primata extinto descoberta por eles no Egito.



Trata-se do Afradapis longicristatus, que é 10 milhões de anos mais novo que o suposto elo perdido, mas, ao que tudo indica, é um parente próximo de Ida, a julgar pela análise detalhada da mandíbula e dos dentes da espécie africana (aliás, esses são os únicos materiais preservados do bicho).



Seiffert e companhia também compararam Ida, o novo primata e outras 117 espécies vivas e extintas de primatas, levando em conta uma lista de 360 características do esqueleto. Essa comparação extensa, que não foi feita na descrição original de Ida, ajuda a estimar quais traços dos bichos realmente se devem ao parentesco e permite montar uma árvore genealógica dessas espécies.



O veredicto: Ida seria apenas uma prima muito distante do grupo que inclui o homem, estando bem mais perto dos lêmures atuais. As semelhanças superficiais dela com o grupo dos antropoides seriam explicadas por evolução convergente -ou seja, porque ambos os grupos adotaram estilos de sobrevivência parecidos.



Comedora de folhas



"São características relacionadas ao encurtamento do focinho e ao processamento de alimentos relativamente duros, como folhas", explica Seiffert. O pesquisador aponta o que, para ele, foi o principal erro da equipe que descreveu Ida.



"Acho que eles deveriam ter feito comparações mais detalhadas com os mais antigos antropoides indiscutíveis. Eles teriam visto que traços como a fusão das duas metades da mandíbula, que não aparecem nesses antropoides [mas aparecem em Ida], não poderiam ser um elo entre Ida e eles."



Philip Gingerich, paleontólogo da Universidade de Michigan e um dos "pais" de Ida, não concorda. "Acho esquisito que o Afradapis seja muito parecido com os antropoides mas acabe classificado em outro grupo. A ideia de convergência parece implausível", diz ele.



Aliás, argumenta Gingerich, "o Darwinius [Ida] conta com um esqueleto muito mais completo que o do Afradapis, e ele apresenta características adicionais de primatas avançados que não aparecem na análise".



Ciência vira espetáculo na TV paga



Embora os autores do estudo original sobre Ida estejam entre os mais exagerados ao ressaltar a importância de seu achado, a ideia de casar a descoberta de fósseis relevantes com um espetáculo midiático virou lugar-comum.



Se Ida foi ao ar num documentário no History Channel, outra fêmea, o hominídeo de 4,4 milhões de anos conhecido como Ardi, virou a estrela do canal Discovery. A diferença é que poucos contestaram a importância de Ardi.



Um dos pesquisadores que assinam a descrição de Ida, Jorn Hurum, da Universidade de Oslo (Noruega), já era conhecido por tentar atrair a atenção do público para seus achados antes de publicá-los num periódico científico. No ano passado, com pouca verba, Hurum divulgou o achado de um réptil marinho gigante para tentar levantar fundos. Ele não respondeu as mensagens enviadas pela Folha sobre o novo estudo.



(Folha de SP, 22/10)



Imagem: http://historiafafica.files.wordpress.com/2009/05/fossil1.jpg

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